Mais estranho que a ficção

Ok, este texto é um spoiler só. São apenas revelações da trama do filme, do começo ao fim. Você não precisa ler, mas eu, como escritor, não posso deixar de escrever. A idéia de escrever sobre esse filme dominou minha mente e não posso pensar em mais nada, até tirá-lo da minha cabeça.

"Mais estranho que a ficção" é um filmão dirigido por Marc Foster com Will Ferrel, Emma Thompson, Maggie Gyllenhaal, Dustin Hoffman, Queen Latifah, Linda Hunt e Kritin Chenoweth. Se você não viu esta obra ainda, pare o que está fazendo (ou seja, lendo esta crônica) e vá ver o filme. Volte aqui depois. Ou não...

No filme Will Ferrel é Harold Crick, um fiscal da receita que com vida solitária, devotado ao trabalho e estremadamente metódico. Com facilidade por números, faz disso seu passatempo, e o mundo gira ao redor de suas contagens e do seu relógio. Will Ferrel é contudo, sacado de sua rotina quando, de súbito, passa a ouvir "uma voz de mulher, com melhor vocabulário que o dele, narrando precisamente o que ele faz e pensa".

Com sua rotina abalada, e buscando entender o que está acontecendo, ele declina de um caso de auditoria mais complexo, sua praia, para ir conferir uma padaria, com impostos em atraso. A ajuda sai pela culatra, contudo, quando ele conhece a dona da padaria, Ana Pascal (linda Maggie Gyllenhall). E a narradora que ele ouve passa até mesmo a ser ignorada por ele, por uns segundos, narrando a forma como ele se apaixona por Ana instantaneamente.

Numa história aparentemente paralela, Karen Eiffel (Emma Thompson) é a escritora enfrentando um bloqueio criativo, e a editora, que espera há 10 anos pelo seu livro "Morte e Impostos" envia uma secretária para auxiliá-la, Penny Escher (Queen Latifah). Karen é mal humorada, sarcástica e escreve os melhores dramas por isso mesmo, faz o leitor se apaixonar pelos personagem, e depois os mata da forma mais cruel que puder pensar. No seu livro, naquele momento, ela não sabe como matar Harold Crick. Confuso? Imagina Harold Crick ouvindo "Little did he know about the eminent of his death". "Quão eminete?", ele começa a gritar contra as nuvens.

A história leva Harold a tentar descobrir quem está narrando sua vida, e que planeja acabar com ela. A psicóloga não ajuda muito, Harold se mostra tão criterioso e teimoso quanto é em sua vida pessoal, e recusa-se a aceitar que seja uma desordem psicológica. Ele pede uma segunda opinião a psicóloga, que baseada na narração que ouviu ele, lhe sugere que procure um professor. De literatura. É onde entra Dustin Hoffman.

Dr. Jules fica intrigado pelas palavras pouco usuais no inglês norte-americano, "Little did he know", e se convence que Harold Crick ou é louco, com excelente veia literária, ou de fato está falando a verdade. Ao longo das próximas duas semanas, um convívio diário surge ("não sabemos quão eminente é sua morte, venha todas as manhãs, às 9, você pode estar morto quinta!"). Mas a descoberta da escritora por trás da história, que se dá na sala de Dr. Jules, é acidental. É ouvindo de fundo uma entrevista antiga da Karen Eiffel que Harold reconhece a voz e passa a buscar como entrar em contato com sua narradora.

O filme é maluco, no bom sentido. Com efeitos visuais maravilhosos, e uma história incrivelmente linear, com narrativa bem cadenciada, narrando a descoberta de uma pessoa à si mesma, na eminência da morte, confrontada com o destino inevitável. Dr. Jules, convencido que não poderá alterar a história que está sendo narrada sobre Harold, lhe diz: desista, vá e faça o que quiser, viva de comer só tortas, se quiser. Harold ficar indignado com a sugestão, "como alguém pode escolher viver só de comer tortas ou lutar por sua vida?", mas Dr. Jules, tranquilo como se mostrou o tempo todo, mesmo confrontando um absurdo lhe diz: "evidentemente, tudo depende da qualidade da torta, e da vida que se está vivendo...". e vai embora. Harold tenta contrariar Jules, mas não consegue. Ele percebeu a crítica feita à sua vida, e decide mudar de vida, enquanto ainda tem uma.

No final, a sensação que se tem é de criatura e criador se encontrando. Eles discutem, e o criador, Karen Eiffel lhe mostra o seu "destino", as últimas páginas do livro ainda não escritas, mas rascunhadas, como dizendo: este é meu plano para sua vida, o que você acha dele. Surpreendente, Harold concorda com a história, acha o seu fim e sua morte lindas, e garante a escritora que vá em frente. Ele estará feliz com aquele final. Dr. Jules, se revela um correspondente de Karen Eiffel, ele, apaixonado pelo trabalho dela, ela, apaixonada pelas cartas que recebe dele (e nunca responde).

A conclusão do livro prevista, o expectador nunca descobre. O livro que marcaria as inter-relações acidentais entre vidas completamente distintas, um garoto classe média ganhando sua primeira bicicleta, uma mulher em seu primeiro emprego como motorista de ônibus e um cobrador de impostos, é alterado. Karen Eiffel não consegue matar Harold Crick, mesmo com seu aval. Surpresa do encontro com sua criatura, que não poderia ter sido melhor narrado: ela o vê, e antes de sobressaltar-se com alguma característica facilmente encontrada em seus livros, é com o desalinho do seu cabelo e as dobras dos seus sapatos que a convencem, antes que ele diga algo, que Harold Crick é o mesmo que ela escreveu. Quando confrontada por Dr. Jules por que não o matou, ela diz|: "Uma pessoa, que mesmo sabendo que irá morrer, diz que não se importa, por sua morte lhe dará um sentido, não é exatamente o tipo de pessoa que gostaríamos de manter viva?".

Existem milhares de interpretações para este filme, desde nenhuma, "ok, os mundo deles se cruzaram, ela narrava de fato a vida de uma pessoa, e ao conhecê-lo decidiu polpá-lo", até a que eu prefiro mais: os dois mundos nunca se cruzaram. Nunca houve, no mundo da escritora Karen Eiffel, um cobrador de impostos chamado Harold Crick. O bloqueio, a dificuldade em terminar o livro por não saber como matar Harold Crick se resumem a uma só coisa: ela se apaixonou pelo personagem que criou", ao narrar-lhe nova vida e fazê-lo feliz em se descobrir, foi incapaz de destruir aquele que ela criou.

Ao longo do filme, Harold Crick pode ter chegado à Dr. Jules por cartas anônimas. Respostas de Karen, buscando uma orientação indireta sobre o que fazer com o personagem. Quando Dr. Jules sentencia, "sinto muito, é a obra prima de Eiffel, você deve morrer", é justamente quando ela vai à ele, diretamente. Ana Pascal e o amigo de Harold do Imposto de Renda, nunca aparecem no mundo da universidade, fora de seus lares ou locais de trabalhos. A escritora não vai ao hospital onde Harold está, mesmo sabendo que ela o colocou lá, com seu livro.

Achei poético como o filme aborda as formas como por vezes, um escritor se apaixona de tal forma com seu texto e sua criação. Mesmo que esta não seja a interpretação correta, o que é correto num filme onde um coletor de impostos passa a ter sua vida narrada por uma escritora inglesa?

Comentários

Editora Delearte disse…
As nossas vidas são uma constante narração! And little do we know what will happen to us, hehehe.

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