Conto: diário de um dia qualquer


Jogo meu velho iPod touch, sem bateria, para o lado. Está ocupando espaço na minha mochila há meses. Gostaria de dizer que é um espaço útil, importante, mas não é. Não há muito na minha mochila. Só o iPod Touch e seu cabo imundo, uma caixa de ferramentas miúdas, de computador, um canivete, uma lanterna quase sem luz e cartões de memória, pendrives e outras tralhas. Quase nada funciona, nada tem bateria. Saudades de quando eu não sabia o que usar. Hoje não tenho nada para usar. 

Minha mochila leva ainda meu diário. Papel ficou abundante com o tempo. Canetas nem tanto. Sem uso elas secam, estouram, vazam. Difícil. Tanto papel, tanto para escrever, tão pouco tempo, tão poucos meios. Eu estou usando um lápis agora, como você pode ver. Ainda tenho muitos, uns 10 na mochila, e um apontador. Eu era técnico de informática antes, sabe? Programava em várias linguagens. Também sabia arrumar hardware, parte de uma coleção de PC's antigos que eu mantinha. Eles ainda estão lá em casa, eu acho. Minha casa, ao menos enquanto morava lá, nunca tinha sido saqueada. Sorte que minha mãe morria de medo de ladrão. Já vi bancos menos seguros..

Hoje eu estou na estrada. Algum lugar da Castelo Branco, já bem depois da Grande São Paulo. Parece que foi ontem que eu fugi. Fugi até acabar o combustível do meu carro. Fui tão tonto. Empurrei um carro sem combustível por quase dois dias até desistir. Não havia sobrado nada. Quando morava na cidade, eu me lembro que os dias sem luz, ou sem água, eram um caos. Mas um caos administrado. Tinha polícia na rua. Só era ruim. Não dava para imaginar que mesmo sendo ruim, que tudo, tudo fosse acabar tão cedo. A cidade como tal não durou uma semana.

Queria ter um relógio de pulso, destes antigos, que funcionam com corda ou com o movimento do pulso, como meu pai tinha. Depois dos celulares eu nunca tive relógio. Não precisava. Aquela merda de aparelho ficava sem bateria no momento que eu entrava em casa. E em casa, eu tinha relógios em cada cômodo. Meus pais eram mesmo preocupados com pontualidade. Coisa de família grande, dois empregos do meu pai, muitos compromissos da minha mãe com três filhos. Natação, aulas, inglês, espanhol, cursos extras, caronas de lá para cá. De cá para lá. Saudades dela. Do meu pai. De casa. Não sei que fim levaram meus pais. Nem meus irmãos.

Quando tudo acabou, eles estavam viajando. Um a trabalho, com a família, num congresso nos Estados Unidos. Ouvi dizer que lá foi o pior. O outro mora no litoral faz tempo. Meus pais estavam nas montanhas. Eu queria ir para lá, mas era do outro lado da cidade, e eu não quis arriscar uma caminhada tão longa, bem pelo centro. Era muito perigoso. Eles devem estar bem, e se não estiverem, não faz mais diferença então, não é?

Eu escolhi esta estrada, Castelo Branco, por ser a mais próxima saída da cidade que eu tinha. Consegui sair da cidade no mesmo dia. Achei que ia ser uma aventura, cheia de perigos, mas logo cruzei Santana do Parnaíba, o pedágio, e já me sentia livre. Foi no velho posto Maristela, ou Estela Maris, que a gasolina começou a falhar. O posto parecia perigoso de qualquer forma. Milícias se formaram ao redor dos recursos que restavam. Nem arrisquei. Andei até a gasolina acabar. E arrastei meu carro por dois dias.

Enquanto ainda tinha carro, carregava inutilmente meus eletrônicos, no acendedor de cigarros. Até acabar a bateria também, do carro. Acho que fiquei apegado àquele carro. Poderia morar nele por uns dias. Mas carros são perigosos. Atraem andarilhos que querem rouba-los. Também são ratoeiras, te prendem dentro dele, na ilusão da segurança. Um dia você acorda e está cercado de criaturas que querem te comer vivo. Zumbis. E não há como escapar. Eles quebram os vidros, mais cedo ou mais tarde. Te jogam aquele sangue negro, pútrido na cara, com os tocos partidos de braços, tentando te romper a pele. Não comigo. Eu deixei meu carro lá atrás. Durmo em árvores. No alto e amarrado nelas, como a Liza fazia num episódio de Os Simpsons.

Preciso ir. Tem algo vindo, ainda longe e lento. Devem ser Zumbis, ou coisa pior. E eu não quero dar uma de herói. Nunca dura muito. Nunca dá certo. Eu vi isso num livro, que está sempre comigo. Protocolo Bluehands, que também está na minha mochila. Esse, eu não quero perder nunca.

Comentários

odetecampos disse…
Nao sei porque lendo este conto me lembrei dos bonequinhos de corda...
Editora Delearte disse…
O dia em que as pessoas perceberam que o conhecimento é poder e aparelhos são só isso...aparelhos que servem de tijolos quando tudo acaba...

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