Conto: Nada é bom, por obrigação...

Era o emprego dos seus sonhos. Comunicador virtual da empresa. Redes sociais, muita internet e muita diversão. Formado em marketing, André mal pode acreditar na própria sorte quando foi chamado para a entrevista. O pneu do carro furou, choveu muito e ele chegou na empresa num misto de ensopado e sujo, na hora da entrevista. E todos riram com ele, e não dele, da sequencia de azares, e ele levou a vaga.

Na primeira semana, seu trabalho ainda era muito acadêmico. Textos bem pautados, título, chamada, explanação, conclusão, tudo muito certinho. E um dia, seu chefe o pegou no facebook, compartilhando um vídeo de gatinhos batendo palmas, e riu com ele do vídeo. "André, veja de novo o vídeo, com atenção, se não tiver marca ou algo com propriedade intelectual, usa o Face da empresa e divulga cara!". Putz, ele podia divulgar o que quisesse nos canais da empresa.

A empresa, deve-se dizer, é uma destas empresas jovens. Vende games para várias plataformas, camisetas com estampas engraçadas, livros do universo dos games de jogos de interpretação de papéis. Tem um forum próprio para os leitores assíduos e um canal de news, twitter, facebook e ainda o velho orkut. A empresa usava o Orkut para anunciar coisas que todos já sabiam, e depois divulgavam o link nas outras redes sociais. Era a piada inserida na piada! Inception! Tóóóóóóó (sirene do filme Inception).

André estava feliz, no emprego dos seus sonhos. Gtalk e skype o dia todo. Tudo que era engraçado era conteúdo da empresa, compartilhável para e pela empresa. Tudo que ele lia tinha relação com a empresa e poderia ser divulgado. Ele criou o instagram da empresa. E melhorou o blog. E fez concursos engraçadinhos pela empresa. André teve um aumento bom, pois passou a ganhar 1% das vendas através dos novos canais. Seus chefes eram caras legais e reconheciam o talento dele.

Foi quando sua avó morreu, que André se afastou um pouco da empresa. Nada que um jovem independente ficasse desconsolado, mas André precisou se afastar, para curtir aquela melancolia, e para ajudar no que desse nas coisas do enterro. Foi quando ele achou um velho livro, sujo e empoeirado, chamado Caminho Suave, Gramática...

André passou os próximos dias, desenterrando e lendo aqueles velhos livros, Gramática, História, Geografia, Matemática, OSPB, nossa, OSPB! E lia, e cuidava das coisas da sua avó. Quando voltou ao trabalho, ainda tinha na cabeça aquele saber todo, que o distraia das suas atividades. Mas seus chefes, sempre gentís, relevavam. André tinha passado por uma perda.

E André, logo criou um novo twitter para si, Literando. E criou um blog para discutir as nuâncias de Espumas Flutuantes de Castro Alves e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Também se aprofundou nos estudos em Matemática, e voltou para um cursinho, e depois para a faculdade, de contabilidade! Conforme seus trabalhos na empresa ficavam mais pobres, menos criativos, ele passou a fazer um extra, uns bicos, fazendo declaração de imposto de renda para os amigos. Gostava de passar os domingos fazendo balanço contábil de empresas, que saiam publicadas nos jornais, só pela diversão de calcular e calcular.

Logo, André perdeu o emprego, mas foi o emprego dele que o perdeu antes. André há muito tinha uma nova obsessão, ele trocou seu smartphone por um dumbphone, trocou a tablet pela assinatura de um jornal econômico, e logo, sob protestos dos pais, estudava biblioteconomia e ensinava xadrez na biblioteca pública. Dizia que a internet e tantas bobagens estragavam a juventude, e se tornou uma pessoa azeda, fechada, dedicada ao ensino de física nas escolas públicas, bicos de contabilidade e seus únicos textos, quando não eram à mão, eram batidos numa máquina Olivetti. E mimiografados.

É como dizem, tudo que é por obrigação, perde a graça. Até se divertir...

(inspirado pela série: Trabalhando para viver ou viver para Trabalhar)

Comentários

Editora Delearte disse…
Coitado do André...e quando a biblioteconomia virar obrigação?

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