Conto: O Choro

Ele amaldiçoava a maldita cidade todos os dias que entrava pela porta do seu apartamento. Vivia numa apartamento feio e mal pintado do centro, uma bocada chamada de Boca do Inferno, próximo ao elevado costa e silva, o minhocão da cidade. Seu apartamento só era mais bonito que o prédio onde vivia, sujo, escuro, mal localizado e com vizinhos piores, mas era o que podia pagar com seu emprego de merda.

Carlos pulou de emprego em emprego até achar este bico provisório permanente de ½ segurança de empresa, ½ porteiro. Uniforme idiota, quente no verão, frio no inverno, de tecido duro que irritava sua nuca e as dobras dos seus braços. Mas isto era perdoável. Dava para pagar a pensão e o aluguel e não tinha que pensar muito. Com crachá entra, sem crachá não entra. Qualquer coisa diferente, era só chamar a mulher do dono na recepção para ela atender e dar conta.

Carlos só odiava uma coisa mais que seu maldito apartamento e esta era esta cidade putrefata, na qual trabalhava e vivia. Uma São Paulo imunda, cheia de gente feia e suja, uma cidade de um calor nojento que no verão faz baratas voarem por sua janela como uma praga do Egito, nas chuvas ele tinha que caminhar por ruas alagadas, desde seu trabalho até sua casa, por que o transporte público era a única coisa que ia pelo ralo. Toda a água e sujeira ficavam pelas ruas. Ele ainda tinha a sorte de morar no primeiro andar, mas era toda a sorte que tinha. Na sua janela ele contemplava uma bela vista do piso do viaduto. A sujeira e poeira que entravam pela janela só não eram maiores que os barulhos que invadiam sua sala, seu quarto e seu sono.

Seu consolo para tudo isso residia na geladeira, na forma de litros e litros de cevada fermentada e gaseificada que desciam por sua garganta seca como água no deserto até o como o embalar em um sono pesado e sem sonhos. Pelo menos isso funcionava, até o mês passado, antes de começar aquela choradeira. Aquela maldita choradeira.

Todas as noites, um choro rouco de mulher, mas com a voz grossa que só tem uma mulher adulta e retardada invadiam seu apartamento por todos os poros das paredes. Deveria mesmo ser uma mulher retardada, provavelmente criada por um casal de velhos, seus pais, que a mantinham cativa de si mesma em
seu apartamento. Talvez o dinheiro para os remédios que a mantivessem calma acabou, ou talvez todo o
dinheiro tenha acabado e eles tiveram que se mudar para esta vizinhança, seja como for, fazia um mês que nem mesmo os litros entorpecentes de álcool o faziam dormir, e ele nem mesmo tinha mais certeza se ouvia
aquele choro horrível ou apenas o imaginava, uma espécie de memoria auditiva que o atormentava.

Depois de um mês seu cabelo começou a cair, mas ele não se deu conta disso de imediato. Até mesmo seu emprego horrível já estava ameaçado, ele andava irritado, pior, sendo notado pela empresa e seus funcionários e, quando foram dois meses de choros noturnos e noites em claro, ele perdeu a paciência com um almofadinha filho da puta de terno e gravata da empresa, que sempre fazia pouco dele, e assim perdeu também o emprego. Melhor – pensou - ao menos tinha o seguro desemprego, mas só foi a seu cubículo que se lembrou de por que andava tão irritado. Aquele choro. Aquele maldito choro. Foda-se, ele pensou, quando arrumar outro emprego vou embora daqui. Mas o outro emprego demorava a chegar, e o choro de todas as noites fez falhas em seu cabelo e olheiras fundas em seu rosto.

Já não sabia quanto tempo havia passado, quando deu para tirar copos contra as paredes até eles acabarem
e bater com a vassoura em todas as paredes, piso e teto, tentando demonstrar o quanto andava irritado com
o vizinho, quem quer que fosse. Isso tinha que acabar, e tinha que ser logo.

No quarto mês, pagando o aluguel com o seguro desemprego e sem ter que pagar a pensão para a puta da ex, ele começou a bater nas portas dos vizinhos. Só que nenhum deles era um casal de velhos com uma mulher adulta e retardada. Pior, nem sequer sabiam de choro algum. E Carlos só podia pensar que era alguma trama para tira-lo do prédio. E o choro, e o calor, e as chuvas, e as baratas. Calor, choro, calor, choro...

Ensopado em suor, no principio do quinto mês, numa noite particular, Carlos com os nervos retesados, magro como nunca e com olhar fixo e louco, caminhou ate o banheiro. Gritou da janela que o maldito choro pare agora, mas não parou. E ele tentou colocar algodão em seus ouvidos, e o choro continuava. Ele empurrou o maldito algodão com a unha cumprida do dedo mindinho ate o fundo, mas não parecia resolver.

Entre goles do gargalo de uma garrafa de wisk barato, e o algodão e o calor e aquele choro, com seu corpo suado e pegajoso, Carlos pegou uma caneta e enfiou, só um pouco, o algodão para o fundo. Pareceu funcionar, então ele enfiou mais um pouco. E mais um pouco. E mais um pouco ate algo estalar lá dentro, e mais um pouco, até um fio vermelho e quente escorrer por sua mão. Mais um pouco, mais um pouco até o choro parar...

Naquela noite, com seu corpo inerte e morto estendido no chão, alguns vizinhos pela primeira vez alguma
coisa, um mulher de voz rouca que não chorando, se não gargalhando hediondo, e vinha de longe, de
algum lugar, talvez, lá do primeiro andar, onde morava o aquele triste homem louco...

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