Conto: Carochinhas Modernas

Aquele era o único bem da família, uma gol batedeira  Era um carrinho bom, tirando o fato dos dois carburadores não pararem regulados. Mas agora era tarde para regulá-los pela enésima vez. Depois de dois anos desempregado Seu Reginaldo não tinha outra alternativa, além de se desfazer do carrinho. A casa já estava re-hipotecada, e sem esperanças de quitar a curto ou a longo prazo (e entenda-se por prazo, algo medido em gerações!).
Era um domingo pela manhã. Dia quente. O apartamento, com os oito filhos não ficava apenas pequeno, ficava uma pequena sauna. Quando estava de bom humor, Seu Reginaldo ainda se referia ao calor do apartamento como um dos poucos regalos que havia conquistado para a família, um apartamento com saúna, mas hoje não era um bom dia. Ele desceu a escada, preguiçosamente. Passou pelo quinto andar, onde a dona Genoveva vendia seus pães aos mais preguiçosos de irem até a padaria, a três quadras dali  Chegou ao estacionamento e o olhou, demoradamente para o gol branco de fábrica, bege pelo tempo.
Seu golzinho era mais que um carro, era um álbum de recordações em sí mesmo. Os adesivos que remetiam às cidades visitadas, aquele estúpido "EU ATROPELO GNOMOS", que pôs só para irritar sua esposa. Ah, aquele dia foi muito divertido, a brincadeira lhe rendeu um vaso na cabeça, que para sua infelicidade, estava mais para concreto à porcelana chinesa.
Seu Reginaldo limpou o carro displicentemente. Não ligou o rádio para curtir um "pagodinho". Não trouxe a mangueira, só um balde com espuma, uma espoja e umas camisas da copa de 90, para enxugá-lo! E alí, com lágrimas nos olhos ele terminou o serviço. Entrou no carro antes de subir e despediu-se demoradamente do painel, dos bancos, dos santinhos no retrovisor. Pensou em pegar a capa de bolinhas de madeira, que usava como massageadora, para colocar na poltrona da sala mas desistiu, as marcas de bitucas de cigarro iriam desvalorizar o carro, que ficassem escondidas.
Ele subiu as escadas até o nono andar vagarosamente. Suspirava a cada passo. Ao chegar no apartamento, gritou pelo seu primogênito:
-  Wesleynelson.
-  Sim, papai. – Ele disse decidido, querendo passar moral ao seu velho.
-  Quero que pegue as chaves e os documentos do carro e o leve à feira de automóveis, lá no Anhembi.
-  Sim, meu pai. Pai… - ele vacilou. Pensou milhões de maneira que poderiam usar para não vender o carro, infelizmente nenhuma era possível - … nada, nada.
-  Mais uma coisa, meu filho, consiga pelo menos dez mil nele, sim? Faça o que puder!
-  Pode deixar pai, ficará orgulhoso com o dinheiro que trarei para casa. Nem vou comentar das multas.
-  Isso, isso…
E assim foi que Seu Reginaldo viu, da janela do nono andar de um condomínio popular, seu primogênito se afastando com seu carro, para vendê-lo, e dar algo de comer à sua família. Naquela tarde as horas passaram como se fossem dias, e o seu filho nunca que retornava. Somente pelo fim da tarde, quando distraía-se com as garotas do Faustão, que viu seu filho entrar pela porta do apartamento. Tinha uma maleta em mãos. Seu Reginaldo sorriu!
-  Filho! Você vendeu nosso carro e trouxe o valor em notas, que maravilha, eu sabia, podia contar com você! – No entanto Wesleynelson parecia constrangido, estava suado, muito mais que o normal para os nove andares pela escada.
-  Filho, é dinheiro que tem ai, né?  - perguntou vacilante Seu Reginaldo…
-  É… É algo melhor, papai. – disse titubeante o filho.
-  Como melhor? O que pode ser melhor que o dinheiro?
-  É um Lápi Tópi, papai.
-  Um o quê?
-  Lápi Tópi… um computador, eu troquei pelo nosso carro, papai…
-  VOCÊ O QUE? – os olhos de Seu Reginaldo pareciam que iam cuspir fogo, ele próprio enrubesceu.
-  Troquei pai. O homem disse que…
-  Pouco importa o que o homem disse, meu filho, era o dinheiro da comida, e agora? Vamos comer isto? É o que quer para sua família?
-  Mas pai, o homem disse…
-  Mas, mas… é só o que pode dizer? Você trocou o único bem da família nisto? Como pode seu cachorro? Como pode? Eu te mato!
E em em um gesto bruto, ele puxou a maleta das mãos de Wesleynelson e a jogou no riozinho que passava por ali  Era o fim, Seu Reginaldo, que não chorou nem quando perdeu dois filhos fuzilados pela troca de tiros, chorou agora. O que daria de comer à família? Sem querer ouvir mais nada, entrou no quarto e bateu a porta.
E Wesleynelson também estava muito triste. Percebia agora o mal negócio que fizera. Se ao menos pudesse desfazer o negócio, mas como? Todos os dados do homem estavam irreparavelmente cifrados em um código, um tal www… Muito triste para pensar e se sentido o mais índio dos brasileiros, enganado por artefatos bonitos, saiu para beber e bebeu a noite toda.
Seu Reginaldo não sabia que horas eram quando acordou com uma algazarra na sala, uma gritaria e uma bateção à sua porta. Ele se levantou, ainda cansado da choradeira, e abriu com má vontade a porta.
-  Que é?
-  Você não vai acreditar… - era Wesleynelson falando, com olhos vermelhos e fedendo a pinga- Vamos, venha ver…
-  Ver o que?
-  Já disse, seu eu disser, jamais irá acreditar, vem ver…
-  Ver o que?
-  Por que não venha simplesmente ver, car…. Digo, venha ver e pronto.
Ainda grogue Seu Reginaldo foi conduzido à janela, de onde atirara o tal computador e o que viu o fez cair de costas. Caído no chão ele começou a balbuciar, e dar rizadinhas afetadas, que não eram, certamente alegria, com todos os seus filhos o cercaram, também incrédulos.
Lá fora estava o maior pé de feijão que eles já viram, indo até o céu, com algumas crianças do prédio correndo em volta, enquanto outras escalavam as primeiras folhas e basa, claro, já estava pichada…

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