Transformações


Um belo dia você irá viver um destes despertares, uma espécie de click que será ouvida de você a até um raio de 200km, e sua mãe irá dizer secretamente "eu já sabia". Vamos contextualizá-lo:

Você está no seu carro. Está quente, o cinto de segurança faz a camisa ficar com uma faixa cruzada no peito, sob a gravata igual à do Vasco, com a diferença que aqui, a faixa é feita de suor. Pior, o calor extremo não pode ser abrandado pelo vidro aberto, é um daqueles dias de verão que chove muito e a menor fresta aberta periga alagar seu carro de forma irrecuperável.

O dia também foi um daqueles. Brigando com seu cliente você teve que contrariar seu chefe e discutir com dois subordinados e um fornecedor, apenas para apaziguar a ira daquele cliente, que reclama justamente daquilo que você prometeu que não iria acontecer. Sua cabeça lateja. A qualquer momento, seu chefe, seu fornecedor, seu cliente, seus funcionários ou a Al Quaeda irá ligar no seu celular reclamando de algo,dizendo que é o fim e indo embora. Chuva. Calor. Dia ruim no trabalho. Só mais uma, antes de partir para a próxima: um amigo de infância liga e se diz desesperado, que faz meses que você fura com ele, e agora ele não acredita que, mais uma vez, você esqueceu do barzinho desta tarde. Você esqueceu, mas se livra desta falando que foi a chuva que o fez cancelar. Ele não acredita. Nem voce acreditaria.

Agora sim, o ápice. Do seu lado está sua esposa. Ela está brava. Muito brava. É nitroglicerina pura e a qualquer momento o dique pode ruir e uma enxurrada de reclamações pode estourar, tão intensa que o jogaria para fora do seu carro ilhado em tráfego. Pior, você não consegue se lembrar por que ela está assim e por fim, acha melhor não dizer nada, absolutamente nada, para não piorar as coisas. Isto não é tudo. Há uma cadeira para crianças no seu banco de trás, devidamente ocupada por uma criança que você tem vaga consciência de ser responsável por ela no mundo mas ela, em retribuição talvez, apenas chora, berra, urra, parece que você esfola sua cabeça no asfalto quente com seu carro em alta velocidade digamos, na esburacada Régis Bittencurt. Mas o carro está parado, de vidros semi-serrados, com sua mulher querendo sua cabeça e o telefone por tocar.

E em todas as rádios parece haver apenas um especial Roberto Carlos de fim de ano ou a voz do Brasil. É nesse momento de tal tensão que acontecerá aquele click que ecoará dalí ao infinito, ainda que sem obter uma respostas em retorno.

Você estará enxugando a testa do suor enquanto agita levemente a cabeça e indagará, com inocência a princípio, "quando virei um destes pais da televisão"? 

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