Até quando?

Você insiste em dizer,
Que enxerga na escuridão
Você insiste em dizer
Que controla a situação
Não minta agora, agora não...

Dia quente em São Paulo, após muito trânsito conseguiu sair da marginal Tietê e agora se arrastava para a Zach Nach. Naquele trecho fechava os vidros instintivamente, para resistir à própria tentação de ver as prostitutas desfilando seus corpos nus no trecho anterior à Cruzeiro do Sul, e por medo daquilo que já foi uma favela imensa. Agiu por instinto, de certa forma ele estava mesmo era perdido em pensamentos quando parou no semáforo. Trabalho, aniversário de sua mãe, viagem de sua esposa, dívidas, novas conquistas, mais coisas do que é possível descrever num parágrafo povoavam sua mente. Mal viu os moleques no semáforo, já tão comum hoje em dia, e viu menos ainda quando avançaram em sua direção, correndo...

?Desde quando viver é um sonho?
?Desde quando um sonho é preciso?
Eu preciso do que eu quero
Eu espero que você me dê

Então os vidros estilhaçados tocavam seu braço e ele assustado nem viu de onde vinham os cacos, num golpe o para-brisa se fora e seu rosto sangrava, o segundo golpe pegou seu rosto em cheio, ele começou a entender que estava sendo atacado, tentou proteger seu rosto do terceiro golpe com o braço esquerdo e este se partiu sem dificuldade diante do peso do tubo. Gritou de dor, com o rosto cortado sem conseguir pensar, o rádio, o calor, o sangue, a dor...

Rock'N Roll não é o que se pensa
O que se pensa não é o que se faz
O que se faz só faz sentido
Quando vivemos em paz
Foi quando, tateando o porta luvas, alcançou o celular primeiro e depois o revólver. Pegou a arma pelo cano e tentava arranjar os dedos corretamente quanto um novo golpe pareceu cair dos céus e acertou-o com tudo na cabeça.

O mundo começava a ficar em câmera lenta e silencioso, sentia a consciência deixando-o e completamente tonto, com a arma segura pelo cano, conseguiu soltar do cinto de segurança e escorregar para o banco do passageiro, onde abriu a porta e jogou-se para fora. A porta bateu no carro ao lado, ele pensou ainda no motorista bravo com a batida, mas a realidade voltou na forma de chute forte nas suas costelas. Duas ele teve certeza que se soltaram. Do chão viu que alguém tateava o interior do seu carro, suas coisas sendo roubadas descaradamente.

Você insiste em dizer
Que resiste à tentação
Não minta agora, agora não
Sem saber como disparou a esmo todo o tambor de sua arma e ficou ainda acionando o gatilho por quase um minuto. Quase foi atropelado por uma moto, ouvia como se fosse muito ao longe um cara gritando algo, gritava com ele mesmo, e ele começou a ficar assustado, as pessoas ao seu redor ficaram bravas, buzinavam e o xingavam, e ele não entendia o que acontecia quando um golpe forte e covarde o pegou pelas costas, gritando que ele era covarde, a arma escorregou para longe e as pessoas todas xingavam e ele teria morrido se não fosse a polícia aparecer e prendê-lo.

Tentou falar, mas a multidão queria agredi-lo, ele estava sem documentos, um corpo à frente dele, moleque de rua, cadê a arma? Cadê? Documentos! Que documentos!Não conseguia coordenar ideias, a dor nas costelas, o braço quebrado, o golpe na cabeça. Por fim, tudo escureceu e ele desfaleceu. Não tinha muitas certezas, nem sabia o que acontecia quando dormiu na prisão, sujo de sangue, de braço quebrado e ele só queria chegar a casa depois de um dia de trabalho.

Foi julgado e condenado, o corpo do moleque de rua tinha três tiros e pela lei legítima defesa é até um único tiro, ele nem se lembrava de ter atirado tanto, era para o alto que ele ativa, mas estava no chão, estava sendo esmurrado por um louco totalmente dopado por barbitúricos e outros tais, mas se ninguém o socorreu, todos o culparam depois, afinal matar um viciado, vítima das drogas, e ele na prisão comum, mesmo tendo superior completo, foi condenado. Na cadeia foi feito mulher e depois, lenda, da forma como morreu. Justiceiros não duram nas cadeias. E ele só queria chegar a casa.

Se te disseram pra não virar a mesa
Se te disseram que o ataque é a pior defesa
Se te imploraram: "Por favor não vire a mesa"
Ouça o que eu digo, não ouça ninguém

Ouça o que eu digo, não ouça ninguém

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