Conto: O ruminante

Ele sentiu o fardo pesado preso ao seu calcanhar esquerdo sem se dar conta do que era, foi só quando virou-se que notou a estranha bola de metal escovado, grande como fosse de futebol, presa por uma corrente. A corrente, larga, tinha a bola em uma ponta e a ele na outra. A principio indignou-se, como aquilo fora parar ali? Ainda mais de metal escovado, que todos sabem não combinar com terno chumbo!

Mas ignorou, mandaria um e-mail a respeito disso a seus superiores quando voltasse a sua mesa, agora, que ele fazia mesmo? Foi só a picareta que o lembrou, ele estava no time de mineração hoje. Como isto aconteceu? Não se lembrava, lembrava-se apenas do instante que deu conta da bola de metal, como se aquilo tivesse lhe interrompido uma linha de pensamento e agora custava a lembrar qual era a mesma. Pensou em virar-se para perguntar a sua colega ao lado sobre o que estavam fazendo, mas antes da voz chegar à boca que abria-se em preguiça, um estalo e uma dor aguda se fizeram, em ordem, ouvir e sentir, em suas próprias costas.

Foi então que lembrou-se sem saber onde tinha aprendido que era proibido falar durante o trabalho nas minas. Falar era considerado um inconveniente; num local tão propício a ecos, bastavam dois para parecer que era uma multidão que conversava e ai como os guardas, parentes dos donos, saberiam quais falavam e quais trabalhavam?

Agora as coisas lhe vinham melhor a sua mente. Lembrou-se que trabalhava das oito às oito para sustentar seus dezessete filhos. A prole farta era determinação do patrão, como tudo o mais que acontecia. Felizmente era um bom patrão, desenvolvera para eles uma horta tão grande, farta e fresca que era possível comer diretamente do solo, tão logo arrancavam as folhas e raízes da terra já estavam propícias para comer. E assim eram as frutas também.

Claro que hora do almoço era outra coisa, eram apenas dez minutos, e só! Mas afinal era fundamental trabalhar muito para poder ter direito ao salário, a comida da família. E assim o patrão determinou apenas dez minutos para o almoço e outros dez, distribuídos em cinco no meio da manhã e cinco no meio da tarde, para as necessidades. Infelizmente o banheiro era de poucos sanitários de tal forma que na verdade, só a hora do almoço era de fato usada para ir ao banheiro, e comia-se escondido nas paradas do banheiro, em turnos, para que todos fizessem tudo.

Mas era um bom patrão. Deixava a todos dormirem em suas terras, e comer do quanto quisessem da horta, desde que não fosse hora de trabalho. Se quisesse, ele poderia comer a noite toda, mas deveria saber que cada piscada de sono durante o serviço e ganharia uma chicotada ardida nas costas. De qualquer forma, ele era um funcionário exemplar, tinha poucas marcas em suas costas para provar isto e por isto mesmo, tinha direito ao mais fresco das verduras e frutos, e era lhe permitido faltar mais vezes para ter cria, afinal a prole de um garanhão, garanhões serão!

E já era noite e ele pastava satisfeito quando, de súbito, acordou, e voltou para reunião regada a PowerPoint e um sujeito irritante com um terno chumbo e cartão de gerente lhe dirigindo a palavra e falando cuspindo. Falta de civilidade.

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