Conto: Tom de branco
Não sei dizer quando tudo começou. Dentre os móveis de casa, nenhum era particularmente branco. Mas o que comprei da loja de design para pobres era o menos. Ou não, ele era branco. Na loja. Em casa, ele não transmitia nenhuma outra cor além do branco, não era cinza, nem bege, nem gelo, nem baunilha, apenas não era branco o bastante. Dane-se, pensei...
Comprei cera um dia. Essa de polir móveis com flor no nome. Quando o móvel ficou do meu agrado, fiquei orgulhoso, foi uma hora lustrando o filho da mãe, mas valeu. Suado e cansado, olhei para o resto da casa. Dá para melhorar, e limpei a casa, do chão ao teto. Quando saío do banho e prendi as luzes, me dou conta da merda que fiz. Tudo estava um tom mais claro, e o móvel, o rack da TV, um tom mais claro à menos que o resto. Minha vontade era de queimá-lo ali mesmo, mas as nove prestações por pagar me impediram. Quem viu diz que a luta entre elas e eu foi uma batalha campal.
Voltei para casa, no dia seguinte, com a solução: um filme plástico adesivo. Branco atômico, dizia a embalagem. Revesti o pedaço de estrume o melhor que pude. Foi tanto tirar de livros e arrastar de móveis, que fui notificado pelo condomínio por deturpar a paz. Até o vizinho de cima reclamou. E o resultado, ao menos, ó, uma bosta.
Tinha que ser a luz da janela, um reflexo, algo. Chego no dia seguinte com quase um quilômetro do mesmo plástico. Desta vez cubro todos os móveis do mesmo tom. E parte do piso. E as paredes. Minha mulher a ha que fiquei louco. O síndico me manda uma multa. O móvel ainda brilha de forma díspare. Não é o branco mais, parece que Escher desenhou essa merda. Nada pára alinhado. As sombras tão erradas quanto um conto de Lovecraft.
Falto ao trabalho. Desmonto o móvel. Monto. Pinto. Lixo. Plastico. Tiro tudo de novo. Nem ouvi a campainha ou minha esposa, ou o telefone. Arrumar aquele móvel, a droga daquele móvel, que me olhava e me provocava era tudo que importava.
Já faz três dias que estou aqui. É por que eu quero. Crise de nervos que nada. Aqui tudo é realmente branco, acolchoado e branco. Tudo finalmente esta em paz. Isso é, se ao menos eu pudesse dar só uma polidonha na cabeceira dessa cama, mas ninguém me deixa tirar essa camisa...
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